segunda-feira, 24 de junho de 2013

A Noite Perdida



Temos todo o tempo do mundo...
...mas não temos tempo á perder!
Renato Russo - Tempo Perdido

           

Odiava ir dormir se sentindo um lixo, embora dormir não seja a palavra correta, já que não dormia há várias noites, só de dia, quando dava. Então corrigindo: Odiava ir deitar se sentindo um lixo! Fumava cigarros um atrás do outro como se fosse um condenado esperando a execução. E não era isso? E não somos isso? Todos condenados esperando o momento decisivo, aquele momento para quais todos nascemos: a morte? Também ouvia músicas deprimentes, melancólicas, que falavam de solidão e dor, da vida e da falta de amor. Ouvia atentamente tudo, todas as palavras ditas nas músicas como se ouvisse um amigo, aquela voz que conversa contigo quando ninguém mais conversa, quando ninguém mais tem nada pra te dizer, ou quando você simplesmente perceber que não precisa mais ouvi-las. Tentava assistir alguns filmes, mas em vão. A vida dos outros, reais ou não, não lhe importava tanto assim. Estavam todos tão perdido quanto ele, com a diferença que para eles o final seria feliz, ou se fosse infeliz, pelo menos teriam um final. Para ele só havia um final pra todos, e não precisava dizer qual, todos sabiam, mas ignoravam. Todos fingem ser imortais, fazem planos, desperdiçam tempo como se tivesse uma eternidade. Assim como ele estava desperdiçando mais uma noite...
A noite mal começara e depois de vários cigarros, músicas e começos de filmes, ele resolveu tomar um banho pra tirar a sujeira do corpo, já que a da alma não conseguia. Não que sua alma fosse suja, ao contrário, julgava ser a alma mais limpa do mundo, e era, se comparada as coisas que via nas almas dos outros, a sua alma era limpa até demais. Mas queria tirar toda essa sujeira dos outros, acumulada em sua alma, e não conseguiria isso com um banho. Mas tomou assim mesmo, tudo como manda o figurino: orelhas limpas pra ouvir mentiras imundas, olhos lavados para ver a crueldade humana, lavar as mãos para apertar mãos sujas e enganadoras. Lavou-se todo, secou-se e todos os “-se” que existem num banho comum, com uma exceção: nunca se olhava no espelho! Não precisa ver o reflexo de uma pessoa vazia, pois sabia como elas eram. Ele conhecia várias, inclusive ele mesmo. Não sabia á quanto tempo não olhava o próprio rosto, nem lembrava direito como era seu rosto. Evitava espelhos, vitrines, água, qualquer coisa que mostrasse o quanto estava se decompondo em vida. Faltavam só os germes, ou não, afinal, dentro dele crescia monstros inimagináveis que ele imaginava, e eram seus monstros, seus vermes, seus germes, comendo sua carne pouco á pouco, se alimentando de seus alimentos, roubando sua energia, sua vida, seu corpo.
Madrugada se estendendo e ele estendido no chão, olhando pela janela tentando enxergar estrelas num céu cinza de fumaça e poluição vinda da modernidade, da evolução do homem, esse ser inteligente que cria coisas maravilhosas e depois descobre que essas coisas fazem mal, e depois cria leis regulando essas coisas, e depois descobre o jeito brasileiro de burlar essas leis. Ás vezes até via uma ou outra estrela, parada, sozinha, fixa no céu, como ele, fixo ao chão. Chegou a fazer um pedido para a estrela. Pediu que ela caísse, se jogasse, se atirasse, para então ele poder fazer um pedido. E, idiota, se perguntou o que pediria para uma estrela cadente, uma estrela á beira da morte, se esse pedido realmente fosse atendido? Pediria paz interior, pra acabar com essa guerra dentro dele, esse duelo entre o coração e o cérebro? Um amor, dois, vários amores, pra poder esquecer que era sozinho, pra poder culpar alguém, pra ter ao menos alguém pra brigar de vez enquando? Um carro para poder sair e rodar pelas ruas olhando o movimento como centenas de pessoas fazem? E se centenas de pessoas fazem deve ser bom, deve fazer bem pra alma, ou como muitas coisas na vida elas só fazem porque os outros fazem? Um emprego, pois o seu dinheiro estava acabando seis meses depois de ter chamado seu chefe de filho da puta escroto?
Imerso nesse pensamento de que poderia fazer um pedido se uma estrela resolvesse se atirar, chegou a cochilar por alguns minutos, aquele sono onde você sabe que não está acordado, mas sabe que não está dormindo. E logo acordava, num susto, num espasmo, como se tivessem cutucado ele, cravado algo, ou simplesmente chamado seu nome. Sempre acordava assim, na maioria das vezes era o seu nome. Sempre tinha a sensação de alguém chamando por ele na rua, na porta, no seu quarto. Não sabia se era alucinação, chamado de algum espírito ou simplesmente lembrança de um tempo remoto, quando pessoas falavam seu nome. Tentou lembrar a ultima vez que ouviu alguém falar seu nome e não conseguiu. Talvez tenha sido no banco quando o caixa chamou (ou foi um número que ele disse?), talvez tenha sido o filho da puta escroto de seu patrão quando disse que ele acabaria se destruindo sozinho num quarto imundo? Seria seu patrão um profeta, um vidente ou algo do gênero? Pois ele realmente estava se destruindo, sozinho, e seu quarto estava imundo. Tocos e cinzas de cigarros mentolados pelo chão como estrelas no céu, pensou e riu e levantou e tirou a roupa e foi pra janela tentar esperar a estrela cometer suicídio. Sentiu o frio da madrugada no corpo nu, magro, mas bem definido, bonito até. Perguntava-se por que estava sozinho se era até atraente, legal com as pessoas legais, e dava atenção pras pessoas que mereciam sua atenção? E lembrou que o problema não era ele, eram os outros. Bobos, hipócritas, mentirosos, invejosos. Não queria fazer parte disso! E se pra ter alguém ele tivesse que fingir que estava contente com a maneira dos humanos fingirem que tudo estava bem, ele preferia ficar sozinho. Na verdade preferia ir embora, sumir, não agüentar mais nada... E podia fazer isso! Foi de repente que isso lhe ocorreu, como a voz que chamava seu nome quando dormia, ouviu a si mesmo dizendo: fuja! Debruçou-se na janela do quinto andar e lembrou de uma das músicas que ouvia: Ela se jogou da janela do quinto andar dizia a letra, e parecia tão lindo, tão poético, tão incrível voar por alguns segundos em direção a liberdade infinita, ao desconhecido e que Deus queira que seja melhor que esse lugar conhecido onde vivo e preferia não ter conhecido.

Pegou papel e caneta e ia começar á escrever um bilhete de despedida, mas não tinha pra quem deixar bilhete algum, não tinha também nada pra dizer, e se tivesse ninguém entenderia mesmo, porque as pessoas só querem pensar e entender aquilo que julgam lhe fazer bem, sem se importar se faz bem ou mal pros outros. E o que ele faria não faria mal algum á ninguém, nem á ele mesmo esperava. Largou a caneta amassou o papel acendeu o cigarro respirou fundo engoliu coragem vomitou seu medo transpirava expectativa. O que aconteceria depois? Uma nova vida? Nada? Qualquer coisa seria melhor do que aquilo que chamava de sua vida. Sentou na janela, olho para os carros lá em baixo, as pessoas dando voltas em torno do mundo tentando achar seu lugar como ele um dia tentou e não conseguiu encontrar. Olhou para as estrelas, para a mais brilhante delas, e ainda pensou antes de pular, que se uma estrela tivesse caído e realizado algum dos seus desejos, tudo poderia ter sido diferente, talvez ele pudesse ser salvo. E então pulou, se atirou, caiu de olhos fechados imaginando voar, enquanto lá no alto, uma estrela fez um pedido!

Autor: Patrick Prade

sábado, 13 de abril de 2013


Vômito



Ele já não agüentava mais! Tinha bebido todas as cervejas naquele bar enfumaçado cheio de bêbados escrotos que tentavam esquecer a vida desgraçada que levavam. Sentia algo na sua garganta, tão forte que doía, parecia rasgar as amídalas e tentava fugir. Mas não era um grito, era mais, era muito maior, tinha muito mais do que um simples ‘ai’ preso naquela garganta, naquele coração. Sabia ter chegado a hora, não dava mais para adiar. Chegou no quarto, pegou o telefone. Eram 2h30min da madrugada de sábado, sempre sábado, que é quando as pessoas percebem o quanto estão sozinhas. Não se importou de acordar o objeto de sua infelicidade. Não importava se ele tinha que acordar cedo no outro dia, afinal, ele próprio não iria nem dormir. Tempo era algo que ele não se importava mais, tempo era algo que sobrava pra ele que passava as noites em claro, engolindo o vomito que agora insistia em sair. Chega uma hora que não dá para adiar e você tem que criar coragem pra fazer o que tem que ser feito. Nada se faz sozinho, e ele, tremendo, discou o número, e esperou o telefone chamar quatro vezes antes de ouvir o ‘alô’ sonolento do outro lado da linha, com aquela voz que tanto amava ouvir e agora não lhe causava nada á não ser nojo. Pediu, tentando esconder o choro, que ele não falasse nada, apenas escutasse, e começou a colocar pra fora tudo o que tinha no coração:
         “Eu amava você, desde cedo aprendi a amar você, isso á algo natural, e até bem pouco tempo atrás eu ainda te amava. Agora, não sei o que sinto, nem sei se sinto algo. Você foi parte importante de minha vida, isso eu não nego, e isso você sabe, nem precisava dizer, mas eu disse porra, eu disse ta? Você está me ouvindo? Ótimo, fique quieto, porque é assim que quero me lembrar de você: o cara que nunca falou nada! Sabe que eu estudei, trabalhei, fiz tudo na minha vida pra você me amar e ter orgulho de mim, mas parece que nunca era o suficiente. Não foi suficiente, mesmo assim você me deixou, depois de tantos anos eu me vejo sozinho no mundo que eu construí pra você gostar de mim.”
         Chorou um pouco, na verdade muito, mas não o suficiente. E sentia que no outro lado da linha também havia choro, mas o outro tentava disfarçar. Ele sabia que o outro nunca gostara de demonstrar seus sentimentos. Sempre foi uma pedra de gelo com todos que tentavam se aproximar. Engoliu o choro, pediu desculpas e continuou:
         “ Tudo o que eu fiz foi destruído quando você foi embora. Você não pensou em ninguém quando partiu, apenas em você. O que você tinha não era o bastante e você trocou tudo por outra vida. Não te culpo, saiba que não. Eu também se pudesse trocava essa minha vida por outra, mas eu penso nos outros, ao contrário de você. Não estou dizendo que você teria que ficar aqui se estava infeliz, mas podia ao menos explicar, conversar, tentar nos fazer entender o que estava acontecendo. Mas você não sabe ser assim. Você fez tudo pelas costas, escondido e simplesmente partiu. Partiu meu coração também. Você sabe que sempre foi uma inspiração pra mim, eu queria ser melhor, eu queria ser bom pra você ter orgulho de mim. Eu amava você até descobrir que você era um covarde. No seu lugar, qualquer pessoa com dignidade sentaria e conversaria, mas fugir é melhor não é? Melhor pra você, apenas pra você. Lembro quantas noites você me dizia que estaria sempre ao meu lado e não me deixaria nada faltar. Hoje estou aqui nesta pensão barata, cheia de baratas, que eu nem sei como vou pagar. Tenho apenas minha mochila com algumas roupas e esse celular que você me deu quando ainda estava do meu lado, quando ainda gostava de mim. Não agüentei ficar naquela casa. Era um inferno andar por ela e saber que não cruzaria por você pelos corredores me dizendo o que fazer. Era impossível assistir televisão naquele sofá onde você me fazia dormir com suas historias absurdas, que me faziam rir. Você sempre foi um péssimo mentiroso, não sei como não percebi quando você mentia que me amava.”
         Ouvia o choro do outro lado da linha. Dessa vez o outro não conseguiu disfarçar. Ouviu o outro pedir pra ele parar, mas ele sabia que não podia parar. Agora era a hora de dizer tudo, pois não sabia o que faria amanhã, nem depois. Só sabia que nesse momento deveria dizer tudo, talvez esse fosse o momento mais verdadeiro que os dois tiveram até então.
Ignorando o pedido, e as tentativas frustradas do outro de se explicar, ele seguiu:
         “Cala a boca! Agora é minha vez de te mandar calar a boca! Você teve oportunidade de se explicar e não o fez, agora é tarde, tudo já foi destruído, tudo acabou. Você fez sua escolha e eu não faço parte dela. Então vou procurar o meu lugar no mundo, vou buscar um meio de reconstruir tudo de uma maneira diferente, sem me espelhar em você. Não quero nunca ser como você. Lembro quando você e eu havíamos brigado uma vez. Ficamos uma semana sem nos falar, mas eu sabia que você estava lá. Ouvia o barulho da porta, do chuveiro, sabia que você estava presente. Até o dia em que você me procurou e disse que não podíamos continuar assim, que tínhamos que fazer dar certo porque nos amávamos. Então fomos acampar e nos divertimos muito. E olhando as estrelas você disse que sempre que algo entre nós não estivesse bem, deveríamos sentar e conversar, e então voltaríamos naquele lago e pescaríamos de novo. Nunca mais fomos pescar, porque nunca mais brigamos. Não houve tempo de brigar. Eu cheguei em casa e você não estava lá. Nunca mais esteve. No inicio achei que logo você voltaria e conversaríamos e iríamos pescar de novo. Fiquei dias olhando as fotos da pescaria, imaginando que dessa vez seria melhor, que eu levaria repelente e não voltaria pra casa todo picado de insetos. Mas os dias foram passando,e a esperança também, até que percebi que você não voltaria mais. Dizer aos amigos que eu não sabia nada mais a seu respeito, que você simplesmente tinha sumido era difícil. No começo disse que você tinha ido trabalhar em outra cidade, e então aos poucos, para alguns, dizia a verdade, que você tinha me trocado. Pra outros eu dizia que você havia morrido, e por vezes me peguei rezando pra que isso ocorresse. Desculpe, mas é verdade! E hoje faz um ano. Um ano que você saiu de casa e um ano que eu nunca mais te vi. E um ano que nunca entrei em contato. Agüentei um ano e agora sei que agüento uma vida inteira sem você. Não sou o único á passar por isso, mas parece que sou o único que nunca imaginava essa possibilidade. Realmente acreditei que veria você envelhecer ao meu lado. Vou embora pra outro lugar, não sei o que fazer mas sei que vou me virar. Apesar de tudo, foi bom fazer parte de sua vida até um anos atrás, mas hoje você morreu pra mim. Descanse em paz!”
Desligou o telefone, chorou mais um pouco. Jogou as fotografias que tinha no lixo do quarto, juntou suas roupas na mochila e fugiu da pensão pela janela pois não tinha dinheiro pra pagar. E foi nesse dia, que aos 16 anos ele falou pela última vez com seu pai.

Patrick Prade

terça-feira, 29 de janeiro de 2013


Parados



Ele chegou na parada de ônibus e a viu. Tinha que falar com ela, era uma oportunidade única. E então começou o diálogo:
-Você vem sempre aqui?
-Fala sério? Esse papo ainda funciona nos dias de hoje?
-Calma, eu só estava querendo puxar assunto, e não queria falar do calor que está fazendo, como todo mundo faz pra puxar assunto.
-Então resolveu perguntar se eu venho sempre aqui nesta parada de ônibus?
-Ok, ficou ridículo, eu sei. Podemos recomeçar?
-Não, não tenho tempo, nem interesse...
-Sem tempo? Mas o próximo ônibus só passa daqui uns 15 minutos.
-Quinze minutos que eu uso pra pensar sobre minha vida ao invés de dar assunto á estranhos...
-E o que você está pensando agora?
-Penso em ir embora á pé...
-Nossa, que dificuldade de te conhecer.
-Eu não converso com estranhos!
-Então como as pessoas deixam de ser estranhas pra você? Como você conheceu quem você conhece hoje?
-Olha amigo, se você não parar, eu serei obrigada a chamar alguém.
-Quem você chamaria? Estamos só nós dois aqui e eu estou tentando manter um diálogo.Porque não usa esses minutos para me falar de sua vida ao invés de só pensar nela. Divida comigo seus pensamentos!
-É preciso de duas pessoas pra haver um diálogo. Você está fazendo um monólogo...
-Não mesmo, porque você está conversando comigo agora...
-Ok, então não direi mais nada!
-Acho meio difícil. Mulheres bonitas costumam falar bastante.
-E os homens feios também. Tentam mostrar inteligência para suprir a falta de beleza exterior. Você é interessante, deve ter alguém na cidade disposto a ouvir seus papos, mas não eu, está bem?
-Viu? Você falou...
-Meus Deus, que chatice! Quer saber, fique aí fazendo seu monólogo, que eu vou embora á pé. Boa noite.
-Espere, não precisa ser assim. Eu fico quieto! Você não precisa caminhar 40 minutos só por isso!
-Como você sabe que levo 40 minutos caminhando até minha casa?
-Sei onde você mora! Já passei lá algumas vezes.
-Você anda me seguindo?
-Não foi o que eu disse! Passei por lá sem querer e vi você. Hoje você está um pouco diferente, mas continua bonita.
-Você me assusta. Vou mesmo á pé!
-Por favor, não vá! Eu paro de falar e fico aqui só te ouvindo, ok?
-Eu não preciso de alguém que me escute! Eu preciso ficar em silêncio e tentar entender o porque ainda estou aqui conversando com você!
-Ok, não quero lhe aborrecer mais.
-Eu sinto muito. Não quis ser rude, mas hoje o meu dia não foi fácil. Além de muito trabalho, ainda vi um acidente que me chocou...
-Pois eu fiquei sabendo, foi a poucas quadras daqui.
-Você disse que ia ficar quieto! Onde estão os ônibus? Estão em greve?
-Calma, devem estar atrasados.
-Ainda acho que deveria ter ido caminhando.
-Como foi o acidente?
-Como?
-O acidente que você falou que viu...
-Bem, na verdade eu não vi. Estava passando quando vi a multidão em torno de um carro, em cima da calçada. Parece que o motorista perdeu o controle e subiu na calçada atropelando uma jovem, que morreu na hora. Foi isso que ouvi alguém comentando, e nada mais.
-Ele teve um ataque do coração, por isso perdeu o controle.
-Quem? O motorista? Como você sabe? Se já sabia, por que me perguntou?
-Eu também ouvi comentários. Ele morreu antes dela. Quando subiu a calçada já estava morto. Acredito que se desse tempo ele teria evitado atropelar a moça.
-Olha amigo, esse papo está me dando arrepios. Vou ligar pro 0800 da empresa de ônibus e perguntar que fim eles levaram...
-Aqui não tem sinal.
-Tem sim! Eu sempre uso o celular aqui. Nossa! Está sem sinal mesmo... Que estranho. Não me faltava mais nada. Estou começando a ficar nervosa e angustiada.
-Isso passa, daqui a pouco você ficará melhor!
-Tem algo estranho. A cidade parece deserta!
-Ele não sabia que ia matar ela...
-O quê? Você ainda está falando disso? Porque você está chorando?
-Não é nada. Eu sinto muito, me perdoa.
-Tudo bem. Pode chorar, mas me explica pelo menos o motivo. Você conhecia a jovem, ou o motorista?
-Mais ou menos. Só me perdoa. Eu não queria te deixar preocupada. Mas não sei como te explicar o que aconteceu...
-Você é mesmo estranho demais! Está aí chorando sem motivo e ainda me pede desculpas. Esse dia está sendo formidável! E pra ajudar nem o ônibus aparece!
-Ele não virá...
-Quem? Como assim não virá? Porque?
-Eu sinto muito. Me desculpe, por favor!
-Pára de chorar assim, está me dando medo. Porque está chorando?
-Porque eu não queria fazer o que fiz! Foi sem querer. Me desculpe, só o que eu te peço!
-Do que está falando? E porque o ônibus não virá?
-Porque mortos não pegam ônibus...


Patrick Prade

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Uma vida



Hoje em dia os seres humanos têm olhos para ver somente o que é lindo por fora, cada um com suas verdades fazendo suas próprias leis julgando, condenando, tirando a vida uns aos outros pela ganância o ouro, a prata, a riqueza crescendo de um dia para o outro pisando humilhando aqueles que plantam e alimentam.
Limpam seus caminhos, suas mansões, tornando escravos aqueles que buscam uma vida melhor para sua família, seus filhos. Os anos passam a velhice chega já cansados doentes abandonados vivem em leitos em algum lugar em uma casa trancada ou perambulando pelas ruas esquecidos pela sociedade pela família... Onde tudo se transforma em lembranças guardadas do passado... Hoje só a tristeza, a dor, o abandono, a solidão de uma vida vivida.

Jari L. Lucas

quinta-feira, 15 de novembro de 2012


Carta Anônima

Chegara cansada, mas feliz, no seu luxuoso apartamento no sexto andar de um dos prédios mais luxuosos de São Paulo, e caro também. Porque o bonito custa caro, embora nem sempre valha mais. O apartamento 603 tinha uma vista maravilhosa nos fins de tarde, quando ela chegou. Cheia de sacolas, abriu a porta e viu o envelope no chão. Largou as sacolas e chamou a empregada para levá-las á sua suíte. Pegou o envelope e entrou no escritório de seu pai. Seu pai era um rico bancário, além de possuir inúmeros imóveis espalhados pela cidade. Seus pais estavam viajando e ela aproveitara para passar o dia fazendo compras e arrumando os últimos detalhes do seu casamento. Noivara cedo, aos 19 anos e agora estava com o casamento marcado para dali á duas semanas. Seu noivo, também jovem e de alta classe viria mais tarde passar a noite com ela, aproveitando a ausência dos pais. Nos outros dias, ia embora antes da meia noite para não gerar fofocas entre a sociedade.
Notou que a carta não tinha remetente e isso a deixou mais curiosa. Serviu um copo de uísque e sentou na poltrona de seu pai para ler a carta. Abriu aflita e começou a ler:

“Querida amiga, venho através desta carta lhe contar algo que me tem tirado o sono e agora não posso mais esconder. Minha intenção não é destruir seu relacionamento, mas sim lhe contar a verdade antes que seja tarde demais. O que vou contar não foi me dito por ninguém, mas visto com meus próprios olhos, e me dói muito ter que ser eu a lhe dar a notícia.
Da janela de meu apartamento, tenho uma vista de alguns bares noturnos que ficam á alguns quarteirões de minha casa. Ganhei de meu pai um binóculo para nossas férias na África, e certa noite estava observando o movimento destes bares, quando vi o carro de seu noivo em uma das ruas. Apesar de não ter visto seu noivo, e apenas o carro, anotei a placa e resolvi conferir nas noites seguintes antes de falar algo sem razão. Nas noites seguintes, ele sempre estava lá. Sinto muito mesmo, mas na terceira noite vi o seu noivo com outra menina. Uma jovem com não mais de 20 anos, provavelmente do subúrbio, pelo modo que se vestia. A cena se repetiu por várias noites: eles chegavam, sentavam em uma mesa, bebiam algumas cervejas e ficavam de beijos e abraços. Em algumas noites eles entravam no carro e se dirigiam para um hotel de quinta categoria que fica na esquina deste bar.
Sinto muito mesmo, peço que acredite no que estou te contando, e se duvidar, investigue. Não posso lhe fornecer o nome do bar nem sua localização porque assim você também descobriria quem sou eu, e não quero que me identifique. Não teria coragem de lhe contar tudo isso pessoalmente. Minha intenção é de lhe ajudar, e não estragar sua vida.
Vou finalizar por aqui. Agora que você sabe a verdade, deixo a decisão em suas mãos, e nunca contarei pra ninguém o que se passou, caso você resolva seguir com esse relacionamento.
Boa sorte.”

Ela não conseguia respirar. Parecia um pesadelo e ela não via a hora de acordar. Tomou todo o uísque em um só gole e se levantou. Tentou imaginar qual de suas amigas teria enviado a carta, tentou lembrar quantas vezes ligou pro namorado depois que ele saia de sua casa e o telefone estava desligado. Tudo ao mesmo tempo passava pela sua cabeça. Encheu outro copo e depois mais um. Juntando as peças logo viu que não seria impossível o que a pessoa da carta afirmava. Embora não quisesse acreditar, a raiva dentro dela fazia crescer a dúvida. Não podia imaginar Ricardo com outra garota! Era torturante. Sempre confiou nele, e não entenderia porque ele procuraria outra pessoa. Ela era bonita, jovem, rica, dava tudo o que ele queria e um pouco mais até. Porque as pessoas traem? Ela se perguntava sem conseguir encontrar a resposta. Onde foi que eu errei?, ela pensava, assim como a maioria das pessoas vítimas de traição, que sempre acham que a culpa é sua, e não da outra pessoa que trocou um relacionamento perfeito por uma aventura.
Faltava pouco para Ricardo chegar. A noite já havia tomado conta da cidade e o ódio já havia tomado conta dela. Não ia deixar assim! Tinha que fazer justiça, ou se vingar, seja lá qual for à diferença. Abriu a gaveta da mesa do pai e encontrou o fundo falso. Ela sabia o que procurava, e encontrou a arma de seu pai. Estava descarregada, mas encontrar as balas não foi difícil. Carregou a arma e guardou-a na gaveta de cima. Ficou ali, se olhando no reflexo do vidro, com a maquiagem escorrendo. Lágrimas negras de um amor traído. A empregada anunciou a chegada de Ricardo e ela ouviu a porta sendo aberta.
- Onde está minha amada Julieta? – Ele perguntou animado para a empregada, e estranhou quando soube que ela se encontrava no escritório.
Entrou e estranhou mais ainda a escuridão. Acendeu a luz e a viu de um jeito como nunca havia visto antes. Parecia que estava diante de outra pessoa. Ela, amarga e cheia de ódio, borrada pela maquiagem e meio embriagada foi direto ao assunto: “Descobri tudo Ricardo!”. Ele, meio assustado e perdido perguntou: “Tudo o que? O que aconteceu meu amor?”. Esse ar de ‘não-sei-o-que-está-acontecendo’ deixou ela com mais raiva ainda. Tanta raiva que pegou a arma da gaveta e apontou para o homem que mais amava no mundo, mais até que o seu próprio pai. O homem que havia dividido seus sonhos e entregara sua pureza, seu tempo e sua vida, não teve tempo de falar mais nada. Foi atingido duas vezes, no coração e na cabeça. A empregada entrara no correndo no escritório e também foi vitima da pontaria perfeita da moça, que praticara tiro ao alvo por insistência de seu pai. “É para sua proteção, é para seu bem!”, ele dizia. Com dois corpos á sua frente, ela encheu mais um copo, acendeu um cigarro e abriu a janela que ocupava quase a parede inteira do escritório. Um forte vento entrou e sacudia as cortinas e seu vestido todo branco, transformando aquele apartamento num cenário de filme noir dos anos 50. Fumou um cigarro sentindo o vento frio no seu corpo, e imaginando as manchetes do outro dia nos jornais sedentos por sangue. “Agora eles tem sangue suficiente para uma semana!” pensou antes de largar o copo vazio e pegar novamente a arma. Apontou para a própria cabeça e sorriu antes de apertar o gatilho e espalhar um pouco mais de sangue no cenário. O vento continuava forte e levou a carta anônima, que dançou pela escuridão da noite antes de repousar no rio que corria alguns quarteirões abaixo daquela cena que nunca seria explicada. Ficou apenas o envelope sem remetente caído no chão, sobre o sangue do casal rico, misturado com o da empregada pobre. O sangue era igual. E o sangue manchou o envelope, ocultando também o destinatário: a moça do apartamento 604, que vai se casar no próximo fim de semana, com um homem infiel.

Patrick Prade