Carta Anônima
Chegara cansada, mas feliz, no seu luxuoso apartamento
no sexto andar de um dos prédios mais luxuosos de São Paulo, e caro também.
Porque o bonito custa caro, embora nem sempre valha mais. O apartamento 603
tinha uma vista maravilhosa nos fins de tarde, quando ela chegou. Cheia de
sacolas, abriu a porta e viu o envelope no chão. Largou as sacolas e chamou a
empregada para levá-las á sua suíte. Pegou o envelope e entrou no escritório de
seu pai. Seu pai era um rico bancário, além de possuir inúmeros imóveis
espalhados pela cidade. Seus pais estavam viajando e ela aproveitara para
passar o dia fazendo compras e arrumando os últimos detalhes do seu casamento.
Noivara cedo, aos 19 anos e agora estava com o casamento marcado para dali á
duas semanas. Seu noivo, também jovem e de alta classe viria mais tarde passar
a noite com ela, aproveitando a ausência dos pais. Nos outros dias, ia embora
antes da meia noite para não gerar fofocas entre a sociedade.
Notou que a carta não tinha remetente e isso a deixou mais
curiosa. Serviu um copo de uísque e sentou na poltrona de seu pai para ler a
carta. Abriu aflita e começou a ler:
“Querida amiga, venho através desta carta lhe contar
algo que me tem tirado o sono e agora não posso mais esconder. Minha intenção
não é destruir seu relacionamento, mas sim lhe contar a verdade antes que seja
tarde demais. O que vou contar não foi me dito por ninguém, mas visto com meus
próprios olhos, e me dói muito ter que ser eu a lhe dar a notícia.
Da janela de meu apartamento, tenho uma vista de
alguns bares noturnos que ficam á alguns quarteirões de minha casa. Ganhei de
meu pai um binóculo para nossas férias na África, e certa noite estava
observando o movimento destes bares, quando vi o carro de seu noivo em uma das
ruas. Apesar de não ter visto seu noivo, e apenas o carro, anotei a placa e
resolvi conferir nas noites seguintes antes de falar algo sem razão. Nas noites
seguintes, ele sempre estava lá. Sinto muito mesmo, mas na terceira noite vi o
seu noivo com outra menina. Uma jovem com não mais de 20 anos, provavelmente do
subúrbio, pelo modo que se vestia. A cena se repetiu por várias noites: eles
chegavam, sentavam em uma mesa, bebiam algumas cervejas e ficavam de beijos e
abraços. Em algumas noites eles entravam no carro e se dirigiam para um hotel
de quinta categoria que fica na esquina deste bar.
Sinto muito mesmo, peço que acredite no que estou te
contando, e se duvidar, investigue. Não posso lhe fornecer o nome do bar nem
sua localização porque assim você também descobriria quem sou eu, e não quero
que me identifique. Não teria coragem de lhe contar tudo isso pessoalmente.
Minha intenção é de lhe ajudar, e não estragar sua vida.
Vou finalizar por aqui. Agora que você sabe a verdade,
deixo a decisão em suas mãos, e nunca contarei pra ninguém o que se passou,
caso você resolva seguir com esse relacionamento.
Boa sorte.”
Ela não conseguia respirar. Parecia um pesadelo e ela
não via a hora de acordar. Tomou todo o uísque em um só gole e se levantou.
Tentou imaginar qual de suas amigas teria enviado a carta, tentou lembrar
quantas vezes ligou pro namorado depois que ele saia de sua casa e o telefone
estava desligado. Tudo ao mesmo tempo passava pela sua cabeça. Encheu outro
copo e depois mais um. Juntando as peças logo viu que não seria impossível o
que a pessoa da carta afirmava. Embora não quisesse acreditar, a raiva dentro
dela fazia crescer a dúvida. Não podia imaginar Ricardo com outra garota! Era
torturante. Sempre confiou nele, e não entenderia porque ele procuraria outra
pessoa. Ela era bonita, jovem, rica, dava tudo o que ele queria e um pouco mais
até. Porque as pessoas traem? Ela se perguntava sem conseguir encontrar a
resposta. Onde foi que eu errei?, ela pensava, assim como a maioria das pessoas
vítimas de traição, que sempre acham que a culpa é sua, e não da outra pessoa
que trocou um relacionamento perfeito por uma aventura.
Faltava pouco para Ricardo chegar. A noite já havia
tomado conta da cidade e o ódio já havia tomado conta dela. Não ia deixar
assim! Tinha que fazer justiça, ou se vingar, seja lá qual for à diferença.
Abriu a gaveta da mesa do pai e encontrou o fundo falso. Ela sabia o que
procurava, e encontrou a arma de seu pai. Estava descarregada, mas encontrar as
balas não foi difícil. Carregou a arma e guardou-a na gaveta de cima. Ficou
ali, se olhando no reflexo do vidro, com a maquiagem escorrendo. Lágrimas
negras de um amor traído. A empregada anunciou a chegada de Ricardo e ela ouviu
a porta sendo aberta.
-
Onde está minha amada Julieta? – Ele perguntou animado para a empregada, e
estranhou quando soube que ela se encontrava no escritório.
Entrou
e estranhou mais ainda a escuridão. Acendeu a luz e a viu de um jeito como
nunca havia visto antes. Parecia que estava diante de outra pessoa. Ela, amarga
e cheia de ódio, borrada pela maquiagem e meio embriagada foi direto ao
assunto: “Descobri tudo Ricardo!”. Ele, meio assustado e perdido perguntou:
“Tudo o que? O que aconteceu meu amor?”. Esse ar de
‘não-sei-o-que-está-acontecendo’ deixou ela com mais raiva ainda. Tanta raiva
que pegou a arma da gaveta e apontou para o homem que mais amava no mundo, mais
até que o seu próprio pai. O homem que havia dividido seus sonhos e entregara
sua pureza, seu tempo e sua vida, não teve tempo de falar mais nada. Foi atingido
duas vezes, no coração e na cabeça. A empregada entrara no correndo no escritório
e também foi vitima da pontaria perfeita da moça, que praticara tiro ao alvo
por insistência de seu pai. “É para sua proteção, é para seu bem!”, ele dizia.
Com dois corpos á sua frente, ela encheu mais um copo, acendeu um cigarro e
abriu a janela que ocupava quase a parede inteira do escritório. Um forte vento
entrou e sacudia as cortinas e seu vestido todo branco, transformando aquele
apartamento num cenário de filme noir dos
anos 50. Fumou um cigarro sentindo o vento frio no seu corpo, e imaginando as
manchetes do outro dia nos jornais sedentos por sangue. “Agora eles tem sangue
suficiente para uma semana!” pensou antes de largar o copo vazio e pegar
novamente a arma. Apontou para a própria cabeça e sorriu antes de apertar o
gatilho e espalhar um pouco mais de sangue no cenário. O vento continuava forte
e levou a carta anônima, que dançou pela escuridão da noite antes de repousar
no rio que corria alguns quarteirões abaixo daquela cena que nunca seria
explicada. Ficou apenas o envelope sem remetente caído no chão, sobre o sangue do
casal rico, misturado com o da empregada pobre. O sangue era igual. E o sangue
manchou o envelope, ocultando também o destinatário: a moça do apartamento 604,
que vai se casar no próximo fim de semana, com um homem infiel.
Patrick Prade