segunda-feira, 24 de junho de 2013

A Noite Perdida



Temos todo o tempo do mundo...
...mas não temos tempo á perder!
Renato Russo - Tempo Perdido

           

Odiava ir dormir se sentindo um lixo, embora dormir não seja a palavra correta, já que não dormia há várias noites, só de dia, quando dava. Então corrigindo: Odiava ir deitar se sentindo um lixo! Fumava cigarros um atrás do outro como se fosse um condenado esperando a execução. E não era isso? E não somos isso? Todos condenados esperando o momento decisivo, aquele momento para quais todos nascemos: a morte? Também ouvia músicas deprimentes, melancólicas, que falavam de solidão e dor, da vida e da falta de amor. Ouvia atentamente tudo, todas as palavras ditas nas músicas como se ouvisse um amigo, aquela voz que conversa contigo quando ninguém mais conversa, quando ninguém mais tem nada pra te dizer, ou quando você simplesmente perceber que não precisa mais ouvi-las. Tentava assistir alguns filmes, mas em vão. A vida dos outros, reais ou não, não lhe importava tanto assim. Estavam todos tão perdido quanto ele, com a diferença que para eles o final seria feliz, ou se fosse infeliz, pelo menos teriam um final. Para ele só havia um final pra todos, e não precisava dizer qual, todos sabiam, mas ignoravam. Todos fingem ser imortais, fazem planos, desperdiçam tempo como se tivesse uma eternidade. Assim como ele estava desperdiçando mais uma noite...
A noite mal começara e depois de vários cigarros, músicas e começos de filmes, ele resolveu tomar um banho pra tirar a sujeira do corpo, já que a da alma não conseguia. Não que sua alma fosse suja, ao contrário, julgava ser a alma mais limpa do mundo, e era, se comparada as coisas que via nas almas dos outros, a sua alma era limpa até demais. Mas queria tirar toda essa sujeira dos outros, acumulada em sua alma, e não conseguiria isso com um banho. Mas tomou assim mesmo, tudo como manda o figurino: orelhas limpas pra ouvir mentiras imundas, olhos lavados para ver a crueldade humana, lavar as mãos para apertar mãos sujas e enganadoras. Lavou-se todo, secou-se e todos os “-se” que existem num banho comum, com uma exceção: nunca se olhava no espelho! Não precisa ver o reflexo de uma pessoa vazia, pois sabia como elas eram. Ele conhecia várias, inclusive ele mesmo. Não sabia á quanto tempo não olhava o próprio rosto, nem lembrava direito como era seu rosto. Evitava espelhos, vitrines, água, qualquer coisa que mostrasse o quanto estava se decompondo em vida. Faltavam só os germes, ou não, afinal, dentro dele crescia monstros inimagináveis que ele imaginava, e eram seus monstros, seus vermes, seus germes, comendo sua carne pouco á pouco, se alimentando de seus alimentos, roubando sua energia, sua vida, seu corpo.
Madrugada se estendendo e ele estendido no chão, olhando pela janela tentando enxergar estrelas num céu cinza de fumaça e poluição vinda da modernidade, da evolução do homem, esse ser inteligente que cria coisas maravilhosas e depois descobre que essas coisas fazem mal, e depois cria leis regulando essas coisas, e depois descobre o jeito brasileiro de burlar essas leis. Ás vezes até via uma ou outra estrela, parada, sozinha, fixa no céu, como ele, fixo ao chão. Chegou a fazer um pedido para a estrela. Pediu que ela caísse, se jogasse, se atirasse, para então ele poder fazer um pedido. E, idiota, se perguntou o que pediria para uma estrela cadente, uma estrela á beira da morte, se esse pedido realmente fosse atendido? Pediria paz interior, pra acabar com essa guerra dentro dele, esse duelo entre o coração e o cérebro? Um amor, dois, vários amores, pra poder esquecer que era sozinho, pra poder culpar alguém, pra ter ao menos alguém pra brigar de vez enquando? Um carro para poder sair e rodar pelas ruas olhando o movimento como centenas de pessoas fazem? E se centenas de pessoas fazem deve ser bom, deve fazer bem pra alma, ou como muitas coisas na vida elas só fazem porque os outros fazem? Um emprego, pois o seu dinheiro estava acabando seis meses depois de ter chamado seu chefe de filho da puta escroto?
Imerso nesse pensamento de que poderia fazer um pedido se uma estrela resolvesse se atirar, chegou a cochilar por alguns minutos, aquele sono onde você sabe que não está acordado, mas sabe que não está dormindo. E logo acordava, num susto, num espasmo, como se tivessem cutucado ele, cravado algo, ou simplesmente chamado seu nome. Sempre acordava assim, na maioria das vezes era o seu nome. Sempre tinha a sensação de alguém chamando por ele na rua, na porta, no seu quarto. Não sabia se era alucinação, chamado de algum espírito ou simplesmente lembrança de um tempo remoto, quando pessoas falavam seu nome. Tentou lembrar a ultima vez que ouviu alguém falar seu nome e não conseguiu. Talvez tenha sido no banco quando o caixa chamou (ou foi um número que ele disse?), talvez tenha sido o filho da puta escroto de seu patrão quando disse que ele acabaria se destruindo sozinho num quarto imundo? Seria seu patrão um profeta, um vidente ou algo do gênero? Pois ele realmente estava se destruindo, sozinho, e seu quarto estava imundo. Tocos e cinzas de cigarros mentolados pelo chão como estrelas no céu, pensou e riu e levantou e tirou a roupa e foi pra janela tentar esperar a estrela cometer suicídio. Sentiu o frio da madrugada no corpo nu, magro, mas bem definido, bonito até. Perguntava-se por que estava sozinho se era até atraente, legal com as pessoas legais, e dava atenção pras pessoas que mereciam sua atenção? E lembrou que o problema não era ele, eram os outros. Bobos, hipócritas, mentirosos, invejosos. Não queria fazer parte disso! E se pra ter alguém ele tivesse que fingir que estava contente com a maneira dos humanos fingirem que tudo estava bem, ele preferia ficar sozinho. Na verdade preferia ir embora, sumir, não agüentar mais nada... E podia fazer isso! Foi de repente que isso lhe ocorreu, como a voz que chamava seu nome quando dormia, ouviu a si mesmo dizendo: fuja! Debruçou-se na janela do quinto andar e lembrou de uma das músicas que ouvia: Ela se jogou da janela do quinto andar dizia a letra, e parecia tão lindo, tão poético, tão incrível voar por alguns segundos em direção a liberdade infinita, ao desconhecido e que Deus queira que seja melhor que esse lugar conhecido onde vivo e preferia não ter conhecido.

Pegou papel e caneta e ia começar á escrever um bilhete de despedida, mas não tinha pra quem deixar bilhete algum, não tinha também nada pra dizer, e se tivesse ninguém entenderia mesmo, porque as pessoas só querem pensar e entender aquilo que julgam lhe fazer bem, sem se importar se faz bem ou mal pros outros. E o que ele faria não faria mal algum á ninguém, nem á ele mesmo esperava. Largou a caneta amassou o papel acendeu o cigarro respirou fundo engoliu coragem vomitou seu medo transpirava expectativa. O que aconteceria depois? Uma nova vida? Nada? Qualquer coisa seria melhor do que aquilo que chamava de sua vida. Sentou na janela, olho para os carros lá em baixo, as pessoas dando voltas em torno do mundo tentando achar seu lugar como ele um dia tentou e não conseguiu encontrar. Olhou para as estrelas, para a mais brilhante delas, e ainda pensou antes de pular, que se uma estrela tivesse caído e realizado algum dos seus desejos, tudo poderia ter sido diferente, talvez ele pudesse ser salvo. E então pulou, se atirou, caiu de olhos fechados imaginando voar, enquanto lá no alto, uma estrela fez um pedido!

Autor: Patrick Prade

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