sábado, 13 de abril de 2013


Vômito



Ele já não agüentava mais! Tinha bebido todas as cervejas naquele bar enfumaçado cheio de bêbados escrotos que tentavam esquecer a vida desgraçada que levavam. Sentia algo na sua garganta, tão forte que doía, parecia rasgar as amídalas e tentava fugir. Mas não era um grito, era mais, era muito maior, tinha muito mais do que um simples ‘ai’ preso naquela garganta, naquele coração. Sabia ter chegado a hora, não dava mais para adiar. Chegou no quarto, pegou o telefone. Eram 2h30min da madrugada de sábado, sempre sábado, que é quando as pessoas percebem o quanto estão sozinhas. Não se importou de acordar o objeto de sua infelicidade. Não importava se ele tinha que acordar cedo no outro dia, afinal, ele próprio não iria nem dormir. Tempo era algo que ele não se importava mais, tempo era algo que sobrava pra ele que passava as noites em claro, engolindo o vomito que agora insistia em sair. Chega uma hora que não dá para adiar e você tem que criar coragem pra fazer o que tem que ser feito. Nada se faz sozinho, e ele, tremendo, discou o número, e esperou o telefone chamar quatro vezes antes de ouvir o ‘alô’ sonolento do outro lado da linha, com aquela voz que tanto amava ouvir e agora não lhe causava nada á não ser nojo. Pediu, tentando esconder o choro, que ele não falasse nada, apenas escutasse, e começou a colocar pra fora tudo o que tinha no coração:
         “Eu amava você, desde cedo aprendi a amar você, isso á algo natural, e até bem pouco tempo atrás eu ainda te amava. Agora, não sei o que sinto, nem sei se sinto algo. Você foi parte importante de minha vida, isso eu não nego, e isso você sabe, nem precisava dizer, mas eu disse porra, eu disse ta? Você está me ouvindo? Ótimo, fique quieto, porque é assim que quero me lembrar de você: o cara que nunca falou nada! Sabe que eu estudei, trabalhei, fiz tudo na minha vida pra você me amar e ter orgulho de mim, mas parece que nunca era o suficiente. Não foi suficiente, mesmo assim você me deixou, depois de tantos anos eu me vejo sozinho no mundo que eu construí pra você gostar de mim.”
         Chorou um pouco, na verdade muito, mas não o suficiente. E sentia que no outro lado da linha também havia choro, mas o outro tentava disfarçar. Ele sabia que o outro nunca gostara de demonstrar seus sentimentos. Sempre foi uma pedra de gelo com todos que tentavam se aproximar. Engoliu o choro, pediu desculpas e continuou:
         “ Tudo o que eu fiz foi destruído quando você foi embora. Você não pensou em ninguém quando partiu, apenas em você. O que você tinha não era o bastante e você trocou tudo por outra vida. Não te culpo, saiba que não. Eu também se pudesse trocava essa minha vida por outra, mas eu penso nos outros, ao contrário de você. Não estou dizendo que você teria que ficar aqui se estava infeliz, mas podia ao menos explicar, conversar, tentar nos fazer entender o que estava acontecendo. Mas você não sabe ser assim. Você fez tudo pelas costas, escondido e simplesmente partiu. Partiu meu coração também. Você sabe que sempre foi uma inspiração pra mim, eu queria ser melhor, eu queria ser bom pra você ter orgulho de mim. Eu amava você até descobrir que você era um covarde. No seu lugar, qualquer pessoa com dignidade sentaria e conversaria, mas fugir é melhor não é? Melhor pra você, apenas pra você. Lembro quantas noites você me dizia que estaria sempre ao meu lado e não me deixaria nada faltar. Hoje estou aqui nesta pensão barata, cheia de baratas, que eu nem sei como vou pagar. Tenho apenas minha mochila com algumas roupas e esse celular que você me deu quando ainda estava do meu lado, quando ainda gostava de mim. Não agüentei ficar naquela casa. Era um inferno andar por ela e saber que não cruzaria por você pelos corredores me dizendo o que fazer. Era impossível assistir televisão naquele sofá onde você me fazia dormir com suas historias absurdas, que me faziam rir. Você sempre foi um péssimo mentiroso, não sei como não percebi quando você mentia que me amava.”
         Ouvia o choro do outro lado da linha. Dessa vez o outro não conseguiu disfarçar. Ouviu o outro pedir pra ele parar, mas ele sabia que não podia parar. Agora era a hora de dizer tudo, pois não sabia o que faria amanhã, nem depois. Só sabia que nesse momento deveria dizer tudo, talvez esse fosse o momento mais verdadeiro que os dois tiveram até então.
Ignorando o pedido, e as tentativas frustradas do outro de se explicar, ele seguiu:
         “Cala a boca! Agora é minha vez de te mandar calar a boca! Você teve oportunidade de se explicar e não o fez, agora é tarde, tudo já foi destruído, tudo acabou. Você fez sua escolha e eu não faço parte dela. Então vou procurar o meu lugar no mundo, vou buscar um meio de reconstruir tudo de uma maneira diferente, sem me espelhar em você. Não quero nunca ser como você. Lembro quando você e eu havíamos brigado uma vez. Ficamos uma semana sem nos falar, mas eu sabia que você estava lá. Ouvia o barulho da porta, do chuveiro, sabia que você estava presente. Até o dia em que você me procurou e disse que não podíamos continuar assim, que tínhamos que fazer dar certo porque nos amávamos. Então fomos acampar e nos divertimos muito. E olhando as estrelas você disse que sempre que algo entre nós não estivesse bem, deveríamos sentar e conversar, e então voltaríamos naquele lago e pescaríamos de novo. Nunca mais fomos pescar, porque nunca mais brigamos. Não houve tempo de brigar. Eu cheguei em casa e você não estava lá. Nunca mais esteve. No inicio achei que logo você voltaria e conversaríamos e iríamos pescar de novo. Fiquei dias olhando as fotos da pescaria, imaginando que dessa vez seria melhor, que eu levaria repelente e não voltaria pra casa todo picado de insetos. Mas os dias foram passando,e a esperança também, até que percebi que você não voltaria mais. Dizer aos amigos que eu não sabia nada mais a seu respeito, que você simplesmente tinha sumido era difícil. No começo disse que você tinha ido trabalhar em outra cidade, e então aos poucos, para alguns, dizia a verdade, que você tinha me trocado. Pra outros eu dizia que você havia morrido, e por vezes me peguei rezando pra que isso ocorresse. Desculpe, mas é verdade! E hoje faz um ano. Um ano que você saiu de casa e um ano que eu nunca mais te vi. E um ano que nunca entrei em contato. Agüentei um ano e agora sei que agüento uma vida inteira sem você. Não sou o único á passar por isso, mas parece que sou o único que nunca imaginava essa possibilidade. Realmente acreditei que veria você envelhecer ao meu lado. Vou embora pra outro lugar, não sei o que fazer mas sei que vou me virar. Apesar de tudo, foi bom fazer parte de sua vida até um anos atrás, mas hoje você morreu pra mim. Descanse em paz!”
Desligou o telefone, chorou mais um pouco. Jogou as fotografias que tinha no lixo do quarto, juntou suas roupas na mochila e fugiu da pensão pela janela pois não tinha dinheiro pra pagar. E foi nesse dia, que aos 16 anos ele falou pela última vez com seu pai.

Patrick Prade